quarta-feira, 4 de maio de 2011

A REDAÇÃO PASSADA A LIMPO

Paulo Nascentes[1]
 “Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...) Convive teus poemas, antes de escrevê-los”. (Carlos Drummond de Andrade)

Que mágico poder é esse, que faz da folha em branco, a um só tempo, um dos mais fascinantes e ameaçadores objetos de nosso convívio diário? Repousam sobre ela a caneta, inerte, e a secreta esperança da aurora de um novo texto, claro, limpo como o dia. Por que as teclas da máquina (ou do computador, no caso) mostram-se tão arredias, no início, como alguma esquiva tribo de aborígines aos primeiros e ousados sertanistas? A resposta, simples: a pequena frequência dos contatos.

Aí está o primeiro parágrafo, sofrido e tortuoso. Tentando desenvolver bravamente o tópico frasal que o encabeça. Cremos ser difícil precisar qual desafio maior: escrever ou iniciar no ofício aqueles que pretendem escrever. Afinal, escrever bons textos é tremendo desafio pessoal. Sabem disso o poeta, o publicitário, o jornalista. Até mesmo o profissional da escrita, acostumado às manhas desse estranho ser volátil e pleno de virtualidades: a palavra. Ensinar a escrever bem, então, nem se fala. “Escrever bem”, aqui, deve ser entendido não apenas como obediência às normas da língua-padrão, sem dúvida importante. Mais que isto: trata-se da composição de texto coeso, coerente, com adequada articulação entre as idéias. O problema, em sua dimensão maior e mais contundente, persiste: saber escrever é, antes, saber pensar. Ninguém comunica - torna comum - senão aquilo que comunicou a si mesmo, o que só é possível através da REFLEXÃO, isto é, do ato de fletir, de dobrar-se sobre si mesmo na busca do contato frequente com aquelas ricas e normalmente inexploradas regiões da psique – como o self – a que alguns indivíduos apenas conseguem chegar, aparentemente, se estimulados com exercícios apropriados e vivências selecionadas. O acesso, por meio da chave da reflexão, aos portais internos do ser, parece a condição prévia e necessária, ao menos para o início dos trabalhos da criação textual, como adverte o Poeta: “Convive teus poemas antes de escrevê-los.” É preciso, pois, estabelecer-se o contato frequente e o convívio estimulante com o "reino das palavras", antes da obtenção do produto desejado: o texto escrito. Há que se cuidar, portanto, do processo que viabilize esse produto. Resumidamente, eis alguns passos de um processo que pretende atuar no ser a partir do seu âmago, de forma holística, e não fragmentária: 1) vivenciar técnicas de mobilização expressiva do Eu, entendido em sua totalidade (como a da escrita no ritmo pessoal, sem a qual teremos uma redação "do pescoço para cima", meramente intelectual, se tanto); 2) discutir as relações texto/contexto; 3) interagir com os textos propostos e sua eventual poeticidade; 4) produzir textos (orais/escritos) resultantes dessas vivências; 5) comunicar, de forma criativa, na roda crítica, os textos produzidos; 6) proceder à reescritura (não se trata do tradicional passar a limpo para melhorar letra e, quando muito, aspectos de ortografia). E por último, mas não menos importante, a escrita no ritmo pessoal, um dos caminhos para o autoconhecimento. Aí está, pois, a grande dificuldade e a mesma solução! O procedimento, tecnicamente simples, não exige quaisquer pré-requisitos para que dele se possa beneficiar quem se disponha a vivenciá-lo. Não se está interessado no produto, mas no processo. Assemelha-se ao atleta em seu aquecimento para o jogo. Não é, portanto, o jogo ainda. Eis o momento de contato intenso com o caos pessoal, aquele caos que precede a criação do mundo. No dizer de Nietzsche, “é preciso ter um caos dentro de si, para conceber e dar à luz uma estrela”. O alcance desse procedimento não deve ser subestimado e só será percebido por experiência direta, por vivência pessoal. Quem se dispuser a fazê-lo, por alguns meses, que conte os resultados!

Quanto à interação com os textos e seus contextos, a escolha recai sobre os textos poéticos e, em especial, sobre as letras da nossa MPB. Nela, excelentes poetas é o que não falta. Assim, ao acaso e de memória, citamos Chico Buarque, Tom, Vinicius, Caetano, Gil, Milton, Djavan, Adriana Calcanhoto, Alceu Valença, Cartola, um universo sem fim. Aqueles sugeridos pelo aluno também, já que a motivação é fator imprescindível para a deflagração do desejo de escrever. Aliada ao texto poético, a música emociona, inspira, provoca, convoca e evoca as reminiscências, o ser total. E é o ser total que deve escrever, se se quiser um mínimo de autenticidade. Evidentemente, os desafios não se esgotam aí. Então, entram os passos seguintes do método, a saber, a produção do texto – agora como produto – e a sua reescritura. Mas aí já são outros quinhentos.

Abrir novo parágrafo, agora, poderia não ser a melhor estratégia. No entanto, quem sabe o articulista não esteja pretendendo refletir sobre o ato da reflexão? É possível que aí esteja o veio de onde se extrairá o filão inesgotável. Reflexão. Se nos fosse pedida uma palavra-de-passe para o Umbral da Câmara Secreta das Poesias Irreveladas (vale dizer, qualquer texto criativo), essa palavra, sem dúvida alguma, seria reflexão. E o que é refletir?

Vamos, leitor. Novo parágrafo se anuncia. E, como os demais, não há de ser fácil! Especialmente quando a postura metalinguística busca seu paroxismo - queira isto dizer alguma coisa ou não! Bem, o fato é que reflexão parece ser a faculdade que menos se exerce e estimula em nossas escolas, do Ensino Fundamental, passando pelo Médio, ao Superior. Raramente é dada a oportunidade aos alunos de exercerem seus inalienáveis poderes de refletir, de meditar e de contemplar as ideias a que são expostos e que lhes são, ouso dizer, impostas. Em verdade, em verdade vos digo: é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha – com erro de tradução e tudo! – que um pobre/rico aprendiz entrar nos reinos dos céus: escrever direito. E o reino dos céus, garante o Mestre, está em nosso interior.

Assim, este sexto parágrafo acaba retomando a discussão iniciada no segundo, ou seja: ninguém comunica senão aquilo que primeiro comunicou a si mesmo. E, possivelmente, aí está o âmago (e o amargo) da questão: criar é tecer uma ponte entre aquilo que se oculta no escrínio de nosso coração e o poder de manipulação da palavra, do código verbal. E, a ser verdade que no princípio era o Verbo, lá estão os poemas (textos, artigos, ensaios, teses, romances) que esperam se escritos.

Saber fechar momentaneamente os olhos, mergulhar no oceânico silêncio interior e dele extrair a sua palavra – plena e original – é, como diria Caetano Veloso, “qualquer coisa”, é estar “pra lá de Marrakesh”. E quando se consegue passar de heteropensado a autopensante, a recompensa pode ser orgástica! Respiração em descompasso, coração aos pulos, o texto se desprende de nós com força capaz de fecundar a mente inquiridora que o tenha acompanhado. E o gozo é mútuo!

A pequena frequência dos contatos que habitualmente fazemos com a nossa contraparte mais íntima e, paradoxalmente, mais ignota revela-se um dos fatores que mais contribuem para nossa eventual falta de ideias, pobreza de vocabulário, falta de originalidade, insistência nas fórmulas gastas, chavões, frases feitas com que descascamos o abacaxi – olha só que primor! – da redação de trinta linhas a ser entregue ao professor na aula seguinte. (Ver a respeito, de Gustavo Bernardo, o livro Redação inquieta). Originalidade, mas como?! Eis que nos acostumamos a olhar o gabarito da questão e a considerar como única a opção que melhor (melhor?) responda ao quesito formulado! E nos esquecemos de “ver com olhos de turista” – no delicioso dizer de Fernando Sabino – aquilo que nossas retinas, fatigadas, veem, mas não enxergam.

Que contribuição nossas escolas, superiores ou não, têm dado para que o aluno se coloque como sujeito de sua aprendizagem, como artífice do seu saber? Que estratégias pedagógicas têm nossas faculdades montado de forma a garantir o espaço para o dizer específico do aluno, para o seu intransferível discurso? Deixemos que cada um relembre sua trajetória escolar pessoal e responda.

Mas... e a difícil questão da linguagem? E as normas da língua-padrão? E as gramáticas, tão profusas nas regras do “bem dizer e do bem falar”, que contribuições trazem – ou que inibições propiciam? – aos que se aventuram nos (des)caminhos da expressão escrita? Enfim, e na hora de se ter a redação passada a limpo? É o que passaremos a discutir brevemente.

Para o professor Uchôa, da UFF, “o ensino centrado em rígidas prescrições é ainda altamente contraproducente, uma vez que o conceito de prescritivo inclui, como facilmente se depreende, o de proscritivo, pois cada 'faz isto' implica um 'não faça isto'” (1981). E é exatamente na questão do tipo de ensino que tem norteado, em grande parte, o trabalho dos professores de Português que devemos centrar nossas discussões. Ensina-se Português, afinal, a pessoas que o têm como língua materna, para quê?

A primeira reflexão que se impõe, objeto já de incontáveis laudas em doutas dissertações e teses, refere-se à insistência das gramáticas normativas, ipso facto, de elegerem uma das variantes da língua, a dita língua-padrão, e dela fazerem a única com direito à cidadania. Tudo o mais que transgrida o que preconizam os literatos ditos canônicos, especialmente escolhidos entre os dos séculos passados, costuma ser atirado à vala-comum quer da pura rejeição (“Isto não é português!”) quer da galhofa e da ironia. Estudo recente, bem fundamentado e em tom por vezes iconoclasta, começa a tornar-se referência obrigatória o livro de 1999 do sociolinguista Marcos Bagno, intitulado Preconceito linguístico: o que é, como se faz. Nele o Autor evidencia o alto grau de estigmatização (gerador e alimentador da baixa auto-estima) a que são submetidos milhões de falantes brasileiros, cujo acesso às variantes de prestígio se vê frequentemente interditado pelas barreiras de um ensino ainda em muitos casos aferrado a regras do “bem dizer e do bem escrever”, que se multiplicam nos “manuais de redação” para os mais variados gostos. Aliás, livrarias vivem abarrotadas desses manuais, alguns excelentes. Nem por isso, tem-se a garantia de resultados infalíveis. Não há receitas de bolo nesse assunto. Todo bom professor sabe disso. E de todas as dificuldades, uma das mais resistentes talvez seja a da busca da autenticidade da expressão. Em outras palavras, a busca da maneira de dizer minimamente original, sem os terríveis chavões, as frases-feitas, a mesmice. Demonstra, também, o quanto o usuário da nossa língua internaliza conceitos de duvidoso valor científico à luz das pesquisas da Linguística. Tantos têm sido os modismos pedagógicos que buscam amparar o professor de português, que o resultado, paradoxalmente, acaba por deixá-lo mais e mais confuso e desalentado. Nessa perspectiva, a variação linguística, inerente a qualquer idioma vivo, tende a ser tomada, de forma acrítica, como sinônimo de deturpação e degenerescência, quando não de gravíssima ameaça de extinção da inculta e bela última flor do Lácio. A propósito, vêm à lembrança os versos da instigante canção, também de Caetano Veloso, “Língua”, que nos remete, pela intertextualidade, a Bilac: “Flor do Lácio, sambódromo, Lusamérica, latim em pó, o que pode o que quer essa língua”. Acresce a isto a ausência de política do idioma séria e consistente, fato também apontado em teses e dissertações acadêmicas. E aqueles mitos apontados por Bagno resultam robustecidos pela nova mania dos “consultórios linguísticos” que infestam a mídia escrita sobretudo. E os exemplos de supostos maus usos da língua são retirados dos próprios jornais que os publicam... E realimentam incessantemente os mitos – “Português é muito difícil”, “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”, “As pessoas sem instrução falam tudo errado” – e tantos mais de idêntico teor.

Que parágrafo enorme! Nestes tempos de conteúdos e embalagens descartáveis convém não exagerar com o tamanho deles. Desse jeito quem acompanha? Melhor e mais prudente encurtar frases e, se possível, ideias. Complexidade não cai bem. De outro lado, o puladinho das supercurtas também acaba cansando, não é mesmo, resistente leitor? Há que mesclar outras de maior fôlego, de preferência povoadas de operadores argumentativos, conectivos, sobretudo subordinantes, alguns relativos, especialmente aqueles cujo emprego poucos dominam. Pronto. Este termina por aqui, não sem antes insistir que o ensino da leitura – e não excluo muitos universitários, professores, mesmo alguns de português, jornalistas – precisa receber o alento renovado, na hora-do-vamos-ver, das muitas e boas pesquisas que se tem produzido em pedagogia do idioma e em linguística aplicada ao ensino de português, no caso.

Outra reflexão necessária diz respeito ao apoio às pesquisas que ultrapasse o nível da retórica da conveniência, aquela em que se evidencia a distância entre o discurso e a ação efetiva. Precisamos conhecer nossa multifacetada realidade linguística tanto na modalidade atualmente escrita quanto na falada, ora com sabor arcaizante, como nos tribunais de justiça, ora com aparência apocalíptica do caos, nas feiras da periferia. A coletânea de estudos organizada pelo linguista Ataliba de Castilho, A Gramática do português falado, busca justamente este objetivo. E traz contribuições impossíveis de ignorar, se se deseja pautar o ensino nos fatos ali demonstrados. Não se advoga a inadequação de se ter um padrão ideal. O que não se quer é que, a pretexto de se perseguir tal ideal, se negue ou desconheça o padrão real, o instrumento de entendimento, sobrevivência e expressão de contingentes de falantes, de usuários da língua a quem esse bem tem sido historicamente negado, patrimônio cultural de todos os cidadãos que deveria ser, e não apenas daqueles bem-nascidos. Como bem já se sugeriu, com o tratamento habitualmente dado à questão, corre-se o risco de termos em breve o MSL, ao lado do MST. Aliás, muitos dos inscritos no Movimento dos Sem-Língua (bem entendido) também o são no dos Sem-Terra. Lavram a terra alheia e tentam equilibrar-se (“nóis se vira como pode e sobreveve como Deus é servido”) nos terrenos proibidos da dita cultura letrada. Em termos antropológicos, cultura é cultura, sem distinções étnicas, sem pretensas superioridades, garante a ciência, mas, não ainda, a dominante consciência.

Em suma, redigir é desafio, como o é sobreviver com (sempre) menos que o equivalente a cem dólares (e que valente quem o consegue!). Se o texto terminar repentinamente, continuem as reflexões e o desejável debate.

Referências:
ANDERSON, Louise. “Escrita no ritmo pessoal”. (mimeo)
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
CASTILHO, Ataliba T. de (org.). Gramática do português falado. Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP, 1990.
KRAUSE, Gustavo Bernardo. Redação inquieta. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. Apostila/notas de aula. Niterói, RJ: UFF, 1981.



[1] Mestre em Letras (UFF/RJ), professor aposentado (IL/UnB), pedagogo, poeta, escritor, terapeuta e focalizador pela Escola Dinâmica Energética do Psiquismo

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